quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

O olhar domesticado

A formação do espectador com senso crítico em relação aos filmes pode passar pela chamada pedagogia das imagens


Lisandro Nogueira

O sucesso de um filme da indústria do cinema deve-se, em parte, ao fato do espectador vê-lo somente uma vez. O avanço da indústria do cinema, a partir dos anos 30 do século passado, fez crescer a quantidade de filmes oferecidos ao público ávido por novidades. É impossível acompanhar tantos lançamentos e, principalmente, ver, mais de uma vez, um título. Acresce-se a isso o deficiente trabalho de formação educacional que vise uma "pedagogia das imagens".

Talvez estejam nesses dois fatores duas grandes dificuldades para a formação de pessoas com senso crítico em relação aos filmes, sendo uma delas o fato de serem capturadas logo no primeiro olhar. Como geralmente não têm oportunidade de rever as narrativas, ou de terem uma boa formação para as imagens (cinema, etc), ficam trancafiadas no que denomino "olhar domesticado": um olhar preso ao senso comum das histórias contadas com imagens em movimento e ao círculo vicioso das narrativas previsíveis que viciam o gosto e não despertam o senso do juízo estético.

Por outro lado, esse espectador é "soberano"; seu olhar é "complexo", pois depende de inúmeros fatores para se formar e estabelecer balizas intrínsecas e externas, tanto que alguns afirmam ser quase impossível afirmar a existência de um "olhar domesticado".

Isso, em parte, é verdade, e compartilho com a noção de soberania e complexidade do olhar. Porém, a minha experiência como professor me permite lançar breves indagações que considero pertinentes.

A formação de professores (multiplicadores para o exercício da fruição estética), que pode contribuir para a educação do olhar, e o simples exercício de rever um filme por parte de qualquer indivíduo são abordados para mostrar como o espectador pode usufruir da apreciação de filmes e programas televisivos, criando, desta forma, um olhar com trânsito mais livre, aberto a novas possibilidades narrativas.

Durante um tempo trabalhei com a formação de professores da rede pública. O objetivo era iniciá-los no ambiente das imagens cinematográficas e televisivas, visando à utilização pedagógica de filmes e programas em sala de aula. Uma das primeiras constatações: os professores são apreciadores contumazes da televisão. A cultura cinematográfica é incipiente e conhecem pouco sobre as cinematografias fora do universo hollywoodiano.

O antídoto imediato que pensei para esse estado de coisas foi o de mostrar as cinematografias que se opõem ao modelo narrativo predominantemente americano. Minha ideia era voluntariosa: ao exibir o "filme de arte" (conceito bastante "danoso" quando se pensa o processo de formação) imaginava que a questão estaria resolvida. Ao mesmo tempo em que resgataria o professor do "cipoal coercitivo" da indústria cultural, lhe daria instrumentos para combater os filmes hollywoodianos na batalha entre o "bom filme" (de arte) e o "mau filme" (cinemão).

Um momento hilário nesse processo foi o da exibição para professores, alunos e comunidade escolar do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Cônscio do exercício de formação, apresentei as credenciais do cineasta, contextualizei historicamente a narrativa e vi minhas intenções naufragarem depois de 20 minutos após o início do filme.

Glauber Rocha é um dos mais importantes cineastas do mundo. Seus dois filmes, Deus e o Diabo e Terra em Transe, são respeitados e admirados. Todavia, num processo de formação, ele pode fazer parte (e fez), mas deve vir depois de um intenso e árduo trabalho com os filmes da escola clássica - americanos na origem e encontrados nos quatro cantos do planeta.

O processo de formação foi completamente reformulado. Após a constatação de que o antídoto para o "olhar domesticado" estava na fruição dirigida e na dissecação do "filme clássico", o horizonte se abriu para uma perene "pedagogia da imagem".

Um dos exercícios mais eficazes foi exatamente o de ver o filme mais de uma vez. A partir daí, dissecá-lo, desconectar as partes e "refazê-lo" na cabeça de cada participante.

Realizar conjuntamente a dissecação de um filme clássico (dos anos 30 até os anos 60) ou de estrutura clássica (o filme clássico contemporâneo) foi um dos melhores exercícios com os professores. Vimos Crepúsculo dos Deuses, filmes americanos dos anos 50 - fonte para os dramaturgos das telenovelas brasileiras - e filmes contemporâneos. Observaram que existem filmes e filmes americanos, ou seja, perceberam que Scorsese, Nicholas Ray, Elia Kazan, Orson Welles são tão bons quanto qualquer cineasta "de arte".

Aos poucos, compreendendo o processo de construção da narrativa (trama, conflito, personagens, tempo, espaço e duração), os professores foram reconhecendo as estruturas e começaram a fazer perguntas sobre o seu próprio olhar em relação aos filmes, novelas, etc. Em seguida, vimos novelas e até telejornais. No final do curso, mostrei filmes do cinema moderno: Ladrões de Bicicletas (De Sica), Acossado (Godard) e Terra em Transe (Glauber Rocha). Os professores não só gostaram bastante desses filmes como retiraram da cabeça a ideia equivocada de que são filmes "de arte", complicados, herméticos.

Penso que a formação educacional, principalmente uma "pedagogia das imagens", pode contribuir decisivamente para que os multiplicadores (professores e outros formadores) possam oferecer novas maneiras de estabelecer o olhar livre, olhar que permita ao espectador confrontar seu contexto histórico, seu cotidiano, sua formação, seus afetos com a experiência estética, seja através dos filmes ou dos programas de televisão.

Desta forma, a soberania do espectador se completa sem a tutela dos pseudoformadores, aqueles que estão em lados opostos: os primeiros, execrando filmes e novelas que o público gosta e admira sem conhecer de perto o contexto do "olhar domesticado"; e os outros, pela exaltação desmedida da afirmação de que "gosto não se discute".
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Publicado no Jornal O Popular em 14 de fevereiro de 2011.

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