terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Indústria cultural e manutenção do poder


A técnica permitiu a difusão da cultura para setores da população e, por outro, sacrificou a lógica da arte autônoma


Rafael Cordeiro Silva

Ilustração Adriano Paulino

“Saber é poder.” A frase de Francis Bacon (1561-1626), considerado o primeiro filósofo da modernidade, traduz a disposição do espírito humano para a investigação da natureza e a descoberta de seus segredos. O entendimento da natureza das coisas pela experimentação, ao contrário do conhecimento especulativo da tradição medieval, tornou-se o caminho para as conquistas que poderiam proporcionar ao gênero humano o melhoramento de suas condições de existência. Bacon captou muito bem o espírito de uma época que começara a perceber que o estudo da natureza poderia levar a novas descobertas e à expansão do conhecimento prático, até então considerado inferior ao conhecimento especulativo. Abriu-se, a partir desse momento, o caminho para a dominação da natureza por meio de técnicas específicas. E a utilização do método experimental com vistas a esse domínio firmou-se também como um dos pressupostos da ciência moderna.

Bacon tinha um grande fascínio pela técnica que ele conhecera em diversos livros e tratados que o precederam, de autoria de investigadores da natureza, experimentadores e construtores de máquinas e artefatos. A convicção de que esse tipo de conhecimento não poderia ser desmerecido, pois gerava resultados práticos para a vida cotidiana, animou os esforços de Bacon quanto à pretensão de sistematizar um método que garantisse maior eficácia técnica. Portanto, a junção de técnica e conhecimento experimental, que os modernos legaram a nós, contemporâneos, é o alicerce da ciência com a qual lidamos hoje.

O poder sobre a alma“A tirania deixa o corpo livre e vai direto à alma.” A frase é de Alexis de Tocqueville (1805-1859) e faz parte de sua principal obra – A Democracia na América –, publicada em duas partes entre os anos de 1835 e 1840. Na obra em questão, o pensador francês viu na busca incessante pela igualdade, característica dos federalistas norte-americanos, uma perigosa tendência para a uniformização das pessoas, para a supressão da singularidade de cada um. Embora inspirada nos ideais iluministas, a igualdade de condições entre todos os homens foi vista com desconfiança e como forte ameaça à liberdade individual. Liberdade e igualdade, dois grandes ícones da Revolução Francesa, não foram concebidos como valores complementares por Tocqueville.

Mais de um século depois, os filósofos alemães Theodor Adorno e Max Horkheimer retomam aquela frase em um contexto inteiramente outro. Na obra Dialética do Esclarecimento, acrescentam a continuação do texto de Tocqueville: “O mestre não diz mais: você pensará como eu ou morrerá. Ele diz: você é livre de não pensar como eu: sua vida, seus bens, tudo você há de conservar. Mas de hoje em diante será um estrangeiro entre nós”. A intenção dos pensadores alemães é denunciar as formas de dominação que não precisam sujeitar os corpos nem se impor pela violência física. Trata-se da dominação pela igualação e homogeneização, que atua no inconsciente (e até mesmo no consciente) dos indivíduos – naquilo que Tocqueville e a grande tradição filosófica denominaram “alma”. Domesticar e direcionar os desejos, com a intenção de tornar todos iguais, revelou-se mais eficaz para a continuidade da dominação do que a sujeição física. É a sujeição do querer, que se realiza sob a aparência de total liberdade, como sugere o texto de Tocqueville. Isso se dá hoje, sobretudo, pela indústria cultural.

Indústria cultural: a técnica invade a arte

A Dialética do Esclarecimento foi publicada em 1947. A obra tornou conhecido o conceito de “indústria cultural”. Hoje, o emprego neutro do termo, para descrever qualquer produção de arte que esteja voltada para o entretenimento, não deixa entrever o significado crítico com que foi concebido. Quando os autores começaram a utilizar essa terminologia, queriam analisar certas tendências sociais e estéticas e criticar o que consideravam novas formas de dominação pelo viés da cultura.

Aquela técnica, outrora saudada por Bacon como caminho inexorável para a dominação da natureza e melhoria da existência humana, agora se torna onipresente, atuando a serviço da ordem econômica capitalista. Ela ultrapassa o âmbito do mero fazer e, onipotente, se transforma em tecnologia. Adorno e Horkheimer sempre consideraram a arte como a expressão das tendências sociais e ao mesmo tempo a instância crítica dessas tendências.

O papel crítico-social da arte consolidara-se com seu próprio processo de constituição na era moderna ou burguesa, isto é, no momento em que ela deixou de estar a serviço do clero e da nobreza e ganhou autonomia. Assim, a arte não mais encontra sua razão de ser naquelas instituições mantenedoras, mas seus temas e formas dizem respeito apenas à sua lógica interna. Esse processo de autonomia da arte também se situa no período burguês, na etapa liberal do capitalismo. É a época em que se constitui um público apreciador de arte e ela deixa de estar referida ao deleite dos nobres ou à decoração de igrejas e composição do ambiente de recolhimento e encontro com Deus.Multiplicam-se os lugares destinados à apreciação da arte: não só os teatros, mas os museus e galerias culturais são destinados à fruição estética.

Adorno e Horkheimer deixam bastante claro que indústria cultural não é arte. E apontam as razões para fundamentar esse ponto de vista. Enquanto a arte autônoma diz respeito à produção da cultura iniciada na época burguesa (mas que não se esgota nesse período), a indústria cultural é mais afeita ao gosto mediano das massas, que constituem o tipo social predominante no capitalismo avançado.

Ela está referida principalmente aos meios técnicos de produção e difusão de cultura padronizada.

Seus exemplos mais típicos, segundo os autores, são o cinema, o rádio e a televisão. Essa última é vista como uma espécie de síntese dos outros dois, na medida em que reúne o alcance do rádio e as possibilidades técnicas do cinema no tratamento da imagem. Os autores afirmam: “A técnica da indústria cultural levou apenas à padronização e à produção em série, sacrificando o que fazia a diferença entre a lógica da obra e a do sistema social”. Em outros termos, enquanto a arte autônoma critica a ordem estabelecida, os produtos da indústria cultural ratificam-na sem cessar. Se, por um lado, a técnica permitiu a difusão da cultura para amplos setores da população, representando um ganho e colocando em xeque a ideia tradicional de arte e de seus modos de exposição – como pensava Walter Benjamin –, por outro, sacrificou a lógica intrínseca da arte autônoma, feriu sua autenticidade e pôs a perder sua capacidade de crítica imanente da sociedade.

Indústria cultural, mídia e o poder sobre a alma

A indústria cultural é fator de coesão social. Seu poder reside em reforçar as relações de poder estabelecidas, zelando para que a ordem dada mantenha-se constante e que o sistema que a alimenta não seja desestabilizado. Ao reforçar o caráter sempre igual das relações, a passividade diante da realidade, a ausência de crítica e o comportamento servil, ela cumpre o papel que o sistema dela espera. Nenhum esforço intelectual é exigido do ouvinte ou telespectador, o que coloca os produtos da indústria cultural em evidente oposição às obras de arte, que requerem concentração e capacidade mental para sua compreensão e fruição. A diversão, comumente usada como pretexto para o consumo da cultura padronizada, é, no fundo, a apologia da sociedade administrada. Depois de uma jornada dedicada à reprodução do capital nas fábricas e nos escritórios, nada mais salutar do que a necessidade de descanso e relaxamento que a diversão proporciona. O ciclo está completo! Assim, “a diversão favorece a resignação, que nela quer se esquecer”.

Os meios de comunicação mais frequentemente analisados por Adorno e Horkheimer foram o rádio, o cinema e a televisão. Quando da redação da Dialética do Esclarecimento, nos anos 1940, eles tinham grande poder de penetração na vida dos cidadãos norte-americanos, mais do que outras formas de difusão de cultura padronizada. Essas também foram consideradas. O mercado fonográfico e a publicidade receberam referências mais esparsas dos autores.

A publicidade serve para dar visibilidade aos produtos. É a ponte que une os dois extremos do mundo mercantilizado: de um lado a produção, de outro a recepção e o consumo. Por isso, Adorno e Horkheimer afirmam ser a publicidade o elixir da indústria cultural. Essa afirmação é tão mais verdadeira quanto mais abundam as mercadorias. A publicidade tem a tarefa de seduzir os consumidores para a aquisição dos mais variados produtos, transformando-os em bens de imediata necessidade. Seu objetivo é transformar em valor de uso uma mercadoria que só tem valor de troca, ou seja, que foi fabricada apenas para ser vendida e não para suprir determinada carência. Para isso ela se encarrega de criar uma identificação entre o produto e o comprador. Sua posição torna-se estratégica graças ao fato de cada vez mais se produzirem mercadorias que não se diferenciam quase nada entre si: marcas de carros, de telefones celulares, hits de um mesmo gênero musical, e assim por diante. O exemplo dos anúncios de marcas de cigarro, quando eram permitidos na mídia brasileira, ilustra muito bem o argumento em questão. Associar uma suposta particularidade de cada um desses produtos a um traço específico da personalidade é a forma pela qual ela logra seu intento.

Ao tentar estabelecer uma identificação entre produto e consumidor, a publicidade pretende realizar o indivíduo como tal. No entanto, como pilar da sociedade de consumo, ela consolida o processo inverso: a castração da individualidade. Não se define o indivíduo pelo incremento de sua capacidade de consumo; indivíduo e consumidor não são termos sinônimos. Na verdade, a publicidade sacrifica o indivíduo, porque reitera sua dependência em relação ao mundo das mercadorias. Em vez de fomentar as autênticas capacidades e qualidades humanas, a publicidade representa a conquista da alma.

A indústria cultural e seu braço forte, a publicidade, realizam com requinte e maestria o temor que Tocqueville manifestara um século antes: a igualação de todos os indivíduos, que foram reduzidos agora à denominação de ouvintes/telespectadores e consumidores. Não é coincidência, portanto, que ela tenha surgido nos Estados Unidos, nação que adotou como exigência máxima a igualdade de todos os seus cidadãos. O que para os federalistas norte-americanos era um projeto político tornou-se, no capitalismo avançado do qual os Estados Unidos são modelares, uma forma sutil de dominação, de consolidação das formas de poder e fortalecimento do sistema. Por isso e com toda razão, Adorno e Horkheimer afirmaram que a indústria cultural é o engodo das massas.

Rafael Cordeiro Silva é professor de filosofia na UFU

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

O olhar domesticado

A formação do espectador com senso crítico em relação aos filmes pode passar pela chamada pedagogia das imagens


Lisandro Nogueira

O sucesso de um filme da indústria do cinema deve-se, em parte, ao fato do espectador vê-lo somente uma vez. O avanço da indústria do cinema, a partir dos anos 30 do século passado, fez crescer a quantidade de filmes oferecidos ao público ávido por novidades. É impossível acompanhar tantos lançamentos e, principalmente, ver, mais de uma vez, um título. Acresce-se a isso o deficiente trabalho de formação educacional que vise uma "pedagogia das imagens".

Talvez estejam nesses dois fatores duas grandes dificuldades para a formação de pessoas com senso crítico em relação aos filmes, sendo uma delas o fato de serem capturadas logo no primeiro olhar. Como geralmente não têm oportunidade de rever as narrativas, ou de terem uma boa formação para as imagens (cinema, etc), ficam trancafiadas no que denomino "olhar domesticado": um olhar preso ao senso comum das histórias contadas com imagens em movimento e ao círculo vicioso das narrativas previsíveis que viciam o gosto e não despertam o senso do juízo estético.

Por outro lado, esse espectador é "soberano"; seu olhar é "complexo", pois depende de inúmeros fatores para se formar e estabelecer balizas intrínsecas e externas, tanto que alguns afirmam ser quase impossível afirmar a existência de um "olhar domesticado".

Isso, em parte, é verdade, e compartilho com a noção de soberania e complexidade do olhar. Porém, a minha experiência como professor me permite lançar breves indagações que considero pertinentes.

A formação de professores (multiplicadores para o exercício da fruição estética), que pode contribuir para a educação do olhar, e o simples exercício de rever um filme por parte de qualquer indivíduo são abordados para mostrar como o espectador pode usufruir da apreciação de filmes e programas televisivos, criando, desta forma, um olhar com trânsito mais livre, aberto a novas possibilidades narrativas.

Durante um tempo trabalhei com a formação de professores da rede pública. O objetivo era iniciá-los no ambiente das imagens cinematográficas e televisivas, visando à utilização pedagógica de filmes e programas em sala de aula. Uma das primeiras constatações: os professores são apreciadores contumazes da televisão. A cultura cinematográfica é incipiente e conhecem pouco sobre as cinematografias fora do universo hollywoodiano.

O antídoto imediato que pensei para esse estado de coisas foi o de mostrar as cinematografias que se opõem ao modelo narrativo predominantemente americano. Minha ideia era voluntariosa: ao exibir o "filme de arte" (conceito bastante "danoso" quando se pensa o processo de formação) imaginava que a questão estaria resolvida. Ao mesmo tempo em que resgataria o professor do "cipoal coercitivo" da indústria cultural, lhe daria instrumentos para combater os filmes hollywoodianos na batalha entre o "bom filme" (de arte) e o "mau filme" (cinemão).

Um momento hilário nesse processo foi o da exibição para professores, alunos e comunidade escolar do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Cônscio do exercício de formação, apresentei as credenciais do cineasta, contextualizei historicamente a narrativa e vi minhas intenções naufragarem depois de 20 minutos após o início do filme.

Glauber Rocha é um dos mais importantes cineastas do mundo. Seus dois filmes, Deus e o Diabo e Terra em Transe, são respeitados e admirados. Todavia, num processo de formação, ele pode fazer parte (e fez), mas deve vir depois de um intenso e árduo trabalho com os filmes da escola clássica - americanos na origem e encontrados nos quatro cantos do planeta.

O processo de formação foi completamente reformulado. Após a constatação de que o antídoto para o "olhar domesticado" estava na fruição dirigida e na dissecação do "filme clássico", o horizonte se abriu para uma perene "pedagogia da imagem".

Um dos exercícios mais eficazes foi exatamente o de ver o filme mais de uma vez. A partir daí, dissecá-lo, desconectar as partes e "refazê-lo" na cabeça de cada participante.

Realizar conjuntamente a dissecação de um filme clássico (dos anos 30 até os anos 60) ou de estrutura clássica (o filme clássico contemporâneo) foi um dos melhores exercícios com os professores. Vimos Crepúsculo dos Deuses, filmes americanos dos anos 50 - fonte para os dramaturgos das telenovelas brasileiras - e filmes contemporâneos. Observaram que existem filmes e filmes americanos, ou seja, perceberam que Scorsese, Nicholas Ray, Elia Kazan, Orson Welles são tão bons quanto qualquer cineasta "de arte".

Aos poucos, compreendendo o processo de construção da narrativa (trama, conflito, personagens, tempo, espaço e duração), os professores foram reconhecendo as estruturas e começaram a fazer perguntas sobre o seu próprio olhar em relação aos filmes, novelas, etc. Em seguida, vimos novelas e até telejornais. No final do curso, mostrei filmes do cinema moderno: Ladrões de Bicicletas (De Sica), Acossado (Godard) e Terra em Transe (Glauber Rocha). Os professores não só gostaram bastante desses filmes como retiraram da cabeça a ideia equivocada de que são filmes "de arte", complicados, herméticos.

Penso que a formação educacional, principalmente uma "pedagogia das imagens", pode contribuir decisivamente para que os multiplicadores (professores e outros formadores) possam oferecer novas maneiras de estabelecer o olhar livre, olhar que permita ao espectador confrontar seu contexto histórico, seu cotidiano, sua formação, seus afetos com a experiência estética, seja através dos filmes ou dos programas de televisão.

Desta forma, a soberania do espectador se completa sem a tutela dos pseudoformadores, aqueles que estão em lados opostos: os primeiros, execrando filmes e novelas que o público gosta e admira sem conhecer de perto o contexto do "olhar domesticado"; e os outros, pela exaltação desmedida da afirmação de que "gosto não se discute".
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Publicado no Jornal O Popular em 14 de fevereiro de 2011.

MinC lança novo sistema de análise de projetos

Na última semana o Ministério da Cultura promoveu, em Brasília, a 184ª Reunião Ordinária da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), para avaliar projetos culturais que solicitam autorização para captar recursos com apoio na Lei Rouanet. A plenária reuniu membros da Comissão, gestores e técnicos do MinC.


Os pareceres dos projetos foram realizados por meio de uma nova ferramenta, o Módulo de Análise do Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura (Salic). De acordo com o MinC, “o módulo traz maior celeridade aos processos analisados, além de unificar eletronicamente as informações necessárias, dispensando o manuseio dos processos físicos”.

Os membros da Comissão agora também podem ter acesso aos projetos antes das reuniões. “Com a implantação, há a possibilidade de uma análise remota, ou seja, os membros podem atuar antes das reuniões mensais, garantindo maior agilidade, segurança e qualidade na tramitação dos projetos. A ferramenta traz maior dinamismo e abre espaço para a discussão de temas estratégicos para a CNIC, como súmulas e moções, além de uma agenda de palestras de gestores do MinC e representantes da sociedade”, explicou Henilton Menezes, secretário de Fomento e Incentivo à Cultura.

O módulo foi elaborado pela Diretoria de Desenvolvimento e Avaliação de Mecanismos de Financiamento da Sefic, em parceria com a Coordenação-Geral de Tecnologia da Informação.

*Com informações do site do MinC